Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor
Se bem que as ciências sociais procuram há tempos se posicionar no (falso) dilema ação e estrutura, não é muito comum no cotidiano das sociedades ocidentais capitalistas ver as pessoas teorizarem acerca da capacidade da agência humana, ou do alcance dos intentos coletivos perante o agente. Mas essa problemática também pode surgir de maneiras variadas, por vezes disfarçada, quicá despercebida, decorrente de temáticas correlatas que emergem da vida social rotinizada.
Os rumos das questões ambientais na atualidade revelam uma grande preocupação com a destruição do planeta. Aqui no Brasil, estamos acompanhando as discussões a partir da elaboração de um novo Código Florestal, o que significa, em princípio, uma mudança nas regras do jogo concernentes ao relacionamento entre a sociedade e a natureza. Nesse horizonte, observamos uma certa pressão do relator do projeto, Aldo Rebelo (PC do B/SP), para que ocorra a votação de qualquer maneira, a despeito de que os documentos finalizados e completos tenham passado por, digamos, um processo conturbado de entrega aos deputados, no intuito de que avaliassem e tomassem posição.
Cabe salientar que até os grandes meios de comunicação publicaram denúncias dos interesses de um grupo de parlamentares em aprovar com rapidez o Código Florestal. Sugerem que quase três dezenas de políticos, deputados e senadores, possuem reais interesses na anístia das multas que levaram por infringir as legislações ambientais nas suas propriedades rurais. Além disso, muitas empresas do agronegócio, sempre conflitantes no trato com o IBAMA e os limites legais de produção, consistem em fortes financiadores eleitorais de algumas bancadas específicas – basta elencar as informações no TSE.
Temos que, por ambos os lados da moeda, ao que parece, para a imaginação sociológica, postam-se referências possíveis da prevalência da ação, do peso das estruturas. Será o interesse particular um motivador dominante na urgência do projeto, numa conduta estratégica desses atores? Serão os grupos de interesse, de caráter múltiplo, que exercem maior carga nas decisões em voga?
Não é senão ilusória qualquer pretensão em solucionar tal pendência do pensamento social. O que é possível empreender é um esboço de problematização a luz dos argumentos movimentados nas suas interpretações. Dotados dessa possibilidade, por aqui pretendemos demonstrar superficialmente algumas sentenças de Anthony Giddens e sua teoria da estruturação. Revisitadas e apresentadas as ideias do sociólogo britânico, rascunhar um potencial caminho de compreensão da realidade abordada.
Giddens fala em teoria da estruturação para fugir dos polos antagonistas presentes no transcurso das ciências sociais, isto é, se desprender de uma espécie de “sociologia estrutural” e de versões da hermenêutica e da fenomenologia. Ele defende que as referidas correntes erram ao conceitar inadequadamente, sem mencionar que “a constituição de agentes e estruturas não são dois conjuntos de fenômenos dados independentemente – um dualismo – mas representam uma dualidade”[1]. Não obstante, salienta que os atores humanos gozam da capacidade de monitorar suas atividades próprias, em paralelo às dos outros, na continuidade da conduta diária, ao passo que, no nível da consciência discursiva, também podem “monitorar essa monitoração”[2]. É imperativo ressaltar, sob a égide da estruturação de Giddens, a ambição de edificar uma teoria social da ação que valorize a humanidade como conjunto de agentes constituídos de cognoscitividade, que monitoram de modo reflexivo os acontecimentos de interação recíproca aos quais estão submetidos.
A condição para a sociologia se debruçar nas análises do que chama de propriedades estruturais de sistemas sociais, destaca Giddens, é que seja “[...] um procedimento válido somente se for reconhecido como colocando uma epoché na – e mantendo em suspensão a – conduta social reflexivamente monitorada”[3]. Com efeito, a vertente adequada para construir a estruturação dos sistemas sociais direciona o olhar aos modos como esses sistemas são produzidos e reproduzidos interagindo, ancorados nas atividadades cognoscitivas de agentes situados que seguram-se nas regras e recursos componentes da multiplicidade de contextos de ação. “Uma das principais proposições da teoria da estruturação é que as regras e o recursos esboçados na produção e na reprodução da ação social são, ao mesmo tempo, os meios de reprodução do sistema (a dualidade da estrutura)”[4]. O teorema da dualidade da estrutura aparece em evidência durante o percurso argumentativo do autor, embora outros aspectos, da importância dada à localização no tempo e no espaço e à rotina, ao incremento de condições impremeditadas nas ações, complexifiquem seu espectro teórico.
Anthony Giddens investe ainda na designação do conceito de agência, no qual ficam deveras elucidadas as atribuições que confere ao desenvolvimento da vida social. Refutando que a agência diga respeito às intenções das pessoas, ela tem o significado de eventos dos quais o indivíduo é o protaganonista, na medida em que ele teria a oportunidade de, num aleatório momento da sequência da conduta, agir ou atuar de forma distinta. “A ação é um processo contínuo, um fluxo, em que a monitoração reflexiva que o indivíduo mantém é fundamental para o controle do corpo que os atores ordinariamente sutentam até o fim de suas vidas no dia a dia”[5].
Uma recente publicação do sociólogo britânico, que, como vimos, tende a considerar de relevância suprema a reflexividade dos agentes, destina-se a pensar os assuntos decorrentes das mudanças climáticas e do meio ambiente nas sociedades contemporâneas[6]. Nela, estipula-se o denominado Giddens paradox, que retrata o tratamento das políticas de transformação climática em vigência pintado de muito risco e incerteza. O cenário tem como ator principal da proposição dessas políticas o Estado, num quadro internacional avesso ao consenso de metas e/ou de mecanismos que controlem a emissão de gases tóxicos. Por sua vez, a disseminação de novas tecnologias expoentes na redução dos malefícios ambientais carregam custos elevados economicamente, nas mãos do financiamento dos sistemas nacionais de inovação. Os mercados ganham o papel de ajudar nesse processo, através da eficiência e concorrência entre as empresas, como no caso dos mercados de carbono. “O estado, claro, continuará a desempenhar papel importante, seja no nível local, regional ou nacional e, sobretudo, como coordenador de esforços oriundos dos mercados e da sociedade civil”[7].
Entretanto, pensando a realidade brasileira, e os episódios envolvendo o Código Florestal, nos parece que, malgrado a interessante inclinação de Giddens e suas contundentes colocações relacionadas à reflexividade dos agentes, teríamos que voltar uma espiada sobre as propriedades estruturais que configuram o recorte em foco. Os atores que encabeçam a querela (essa apontada pelos ambientalistas como um grave retrocesso no que concerne à preservação ecológica) cintilam como reflexivos, de fato, monitorando suas atividades e suas monitorações; todavia, os elementos que conjugam as redes societais nas disputas políticas, em conexão com os fatores econômicos de manutenção de uma ordem de coisas estabelecida, conduzem nossa percepção a sublinhar as ações que se forjam no âmbito que se poderia entender como propriedades estruturais do sistema social. Eles parecem levados numa condicionante maré de relações de poder, a qual suas atividades existem em sentido facilitador ou coercivo, no entanto sem alterar o ritmo das ondulações.
A rigor, as diretrizes governamentais de Lula da Silva e Dilma Rousseff miram o desenvovimento econômico, propulsor de um Brasil forte, com alguns dispositivos de distribuição de riquezas e investimentos planejados modificando lentamente a estratificação social. Esta concepção contradiz, no limite, um Estado preocupado em defender as riquezas naturais frente ao “progesso a todo custo”. Por mais que os ministérios chefiados por Marina Silva e Carlos Minc tenham desafiado o empresariado e o próprio governo, restringindo licenças de grandes empreendimentos e executando um trabalho de vanguarda na função da pasta que ocupavam, está aí Belo Monte, estão as Usinas Nucleares, os desmatamentos, e está para nascer o famigerado novo Código Florestal, uma indigestão para os que anseiam vislumbrar uma “filosofia de sociedade” embasada, que seja, no tão simplificado desenvolvimento sustentável.
À margem dos comentários alheios, o pensamento social pode colaborar com uma postura reflexiva, eis uma mínima pretensão contida neste ensaio. Não oferecendo respostas fechadas a indagações por excelência amplas, ao menos estamos agindo com honestidade intelectual. Porém, nada disso é igual à abstenção, à fuga obstinada. Se assim agisse o sociólogo, pouco teria a acrescentar.
NOTAS
1 Cf. GIDDENS, Anthony. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Página 30.
2 Idem. Página 34.
3 Idem. Página 37.
4 Idem. Página 23.
5 Idem. Página 11.
6 Cf. GIDDENS, Anthony. The Politics of Climate Change. Cambridge: Polity Press, 2009.
7 Cf. KAISER, Leandro. Anthony Giddens e as políticas da mudança climática. In: Sociologias, Porto Alegre, ano 13, número 26, jan./abr. 2011, página 367.
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