Bernardo Caprara
Sociólogo e Jornalista
O sol brilhava e esquentava o dia. Estava lá para apoiar uma pessoa que conhecia havia pouco tempo, mas dera tantos sinais de que merecia a ajuda, que ele tinha certeza que fazia a coisa certa. Em meio a muito pó, o depósito de veículos do governo estadual tinha um aspecto deteriorado. A missão era tirar o carro dali.
O automóvel estava legalmente no seu nome, mas há muito já não lhe pertencia. No decorrer do processo de transferência aconteceu o furto, fato que o fez parar lá, no local que mais parecia um cemitério de latas. Passaram ambos por uma porta enferrujada, sob a ordem de que apenas um poderia entrar. Tudo funcionava estranhamente. Entraram os dois. Chegaram ao carro e, então, as previsões se tornaram realidade: sobraram somente a carcaça e o motor fabricado nos idos de 1989.
Observaram atônitos, banhados pela quentura solar dos tristes trópicos. Atrás do banco do motorista, duas ferramentas atiradas davam os tons do prejuízo que o rapaz que ele fora auxiliar teria pela frente. Só que representavam mais do que isso. Representavam a desconfiança de que o ganancioso sistema de crimes, corrupções e ilegalidades envolvendo veículos automotores estava ali, evidenciado diante deles. Funcionários do depósito depenam ao máximo o fruto do desejo alheio, enquanto os dois (!) trabalhadores da perícia atendem ao enorme número de ocorrências diárias em toda a capital. Depois liberam o carro. A cena está pronta. E assim essa espécie de “máfia” segue ferindo o sonho dos outros.
Ele se foi, suado, pensando nos detalhes que fizeram com que o ideário da razão iluminista (igualdade, liberdade e fraternidade) perdesse o embate para a “mão direita” da modernidade. O núcleo duro das relações econômicas capitalistas, da procura incessante pelo lucro, do culto ao indivíduo que produziu seu sucesso sozinho, elementos que parecem vencer as belezas das utopias da humanidade. O final, este a gente ainda desconhece. O final desta historieta, entretanto, tem um gosto amargo indescritível.
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