ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Três críticas aos governos do PT

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Sou daqueles que dificilmente veem seu candidato à presidência vencer o pleito maior da República. Vi uma vez, nesses quase 30 anos. Baita decepção. O tempo passou. Tenho criticado a ilusória nova política que se abre diariamente na candidatura de Marina Silva. Porém, para me manter fiel comigo mesmo, não posso deixar de criticar os governos do PT, visto que venho fazendo isso há anos e ainda vejo motivos para fazê-lo. Dirijo minhas divergências à estratégia de alianças políticas, às relações indígenas-campo-agronegócio e aos apoios declarados ao modelo de segurança das UPP’s no Rio de Janeiro.

Antes de tudo, se é verdade que o presidencialismo de coalização fomenta alianças pragmáticas, por vezes pouco programáticas, uma retórica de oposição levantada por Marina Silva, ainda assim eu não consigo (não adianta) atribuir um sentido valoroso para as conexões estabelecidas pelo PT no governo [1]. Pode ser falha minha, mas Lula e Maluf não combinam na minha gramática imaginativa das coisas políticas, intrincada com leituras e análises da realidade. O PP não faz sentido em conexão com o PT. Collor e tantos outros, tampouco. Pelo menos, não deveriam ter nada a ver com o PT. Michel Temer e o PMDB...

Isso me leva a uma figura como Kátia Abreu. Leva a sua defesa intransigente do agronegócio, fração ascendente no bloco no poder levemente redesenhado a partir da metade do segundo governo Lula, quase sempre associada aos mais nefastos valores sociais (racismo, homofobia, etnocentrismo, etc.). Leva ao fato de que ela e os barões dessa fração do poder econômico brasileiro travam muitos avanços na pertinente orientação heterodoxa residente desde a crise de 2008 na economia nacional. Pertinente e paradoxal. A exportação de commodities (soja, carne, grãos) como carro-chefe do superávit primário, sejam os números maquiados ou não, parece-me um desígnio do forte e devastador impacto numa série de vidas brasileiras que se relacionam com o mundo real fora dos grandes centros urbanos.

Um modelo de país desenvolvido precisa atentar para os graves problemas originados de empreendimentos como a hidrelétrica de Belo Monte, por exemplo. Um atropelo quanto aos mecanismos de remediação das mazelas locais, sociais e ambientais, como o que está acontecendo, manifesta-se muito prejudicial ao Brasil [2]. O Brasil é um país heterogêneo, repleto de “mundos” diferentes, cujas cosmologias e interpretações da realidade agregam uma pluralidade impagável às gentes destas terras. Quando leio as tristes denúncias de antropólogos como Eduardo Viveiros de Castro [3], reconhecidos internacionalmente, não devo evitar o pronunciamento destas palavras críticas. Se o “mundo” dos povos indígenas já não existe mais, foi dizimado pelo colonialismo, a tarefa ética contemporânea é garantir o cumprimento da Constituição de 1988 e demarcar as terras indígenas sem relativizar a lei.

Por outro lado, tão entristecedor quanto o primeiro, se a política econômica voltada para a fração do agronegócio no bloco no poder ganha a relevância que ganhou, é uma obviedade que os indicadores da concentração da terra serão terrivelmente elevados, à medida que os relativos à reforma agrária flertarão com o ostracismo. E é isso mesmo que os dados revelam [5]. O compartilhamento das terras improdutivas e uma política potente e volumosa de recursos, ensino técnico e superior para a produção da agricultura familiar e/ou agroecológica, nesse cenário vira uma piada de mau gosto. Sei de iniciativas dos governos do PT em prol da agricultura familiar aqui e ali. Contudo, refiro-me a concretude de um projeto ambicioso a nível federal, que não parece compatível com o modelo econômico de exportação de commodities. Os dados abaixo são do Dataluta, da Unesp e do INCRA.

Número de famílias assentadas (1985-2011)

Evolução da concentração de terra no Brasil (2003-2010)

O último aspecto refere-se à violência nos centros urbanos. Nas grandes cidades, sobretudo no Rio de Janeiro, os modelos de segurança pública criminalizam as populações de baixa renda e os moradores de comunidades pobres. Negros e pobres são assassinados a varrer neste país, seja de que lado a bala venha [4]. E as UPP’s reproduzem esse genocídio em alguma escala, numa forte escala, diga-se de passagem [6]. Isso remete ao necessário enfrentamento ao conservadorismo das instituições de segurança nacional (polícias e exército). A Comissão da Verdade é um magnífico avanço, mas precisa prosperar [7]. A PEC 51, que problematiza o caráter das polícias no Brasil, outro avanço que precisa de espaço na agenda pública. Enquanto nada disso prospera, quando Dilma Rousseff aparece entusiasmada com o candidato da situação no Rio de Janeiro [8], torna-se imperativa uma crítica ao modelo repressivo segregador e atrasado vigente por aqui.

As considerações expostas acima me deixam um pouco mais coerente com as minhas próprias convicções acerca das forças políticas que disputam supremacia na democracia representativa brasileira. Aqueles que possam ter me visto como um petista, eu espero que agora não vejam mais. Tenho outras incontáveis críticas aos governos do PT no âmbito federal – e, nesse momento, estadual: e o piso salarial governador? Entretanto, volto a ressaltar, sublinhar e deixar bem claro: a candidatura de Marina Silva me parece ainda pior.

Referências

[1] http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/06/1476940-para-fortalecer-dilma-pt-fecha-aliancas-polemicas-e-faz-intervencoes.shtml

[2] http://www.osimpactosdebelomonte.com.br/sobre-o-projeto/

[3] http://www.ihu.unisinos.br/noticias/533867-indigenas-vivem-em-faixa-de-gaza-brasileira-diz-eduardo-viveiros-de-castro-

[4] http://negrobelchior.cartacapital.com.br/2013/10/18/indice-de-assassinato-de-negros-o-problema-e-social-e-nao-racial/

[5] http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=2866:catid=28&Itemid=23 / http://www.brasildefato.com.br/node/11534

[6] http://www.revistaforum.com.br/blog/2014/03/upp-ja-nasceu-como-um-modelo-fracassado/

[7] http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2013-12-26/comissao-da-verdade-tera-ate-dezembro-de-2014-para-concluir-trabalhos

[8] http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2014-09-12/dilma-lamenta-morte-de-comandante-de-upp-e-elogia-alinhamento-de-governos.html

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