Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor
“Nem oito, nem 80”. Expressão interessante. Busca o caminho, o percurso, não os extremos. Li o texto de um amigo publicado hoje num jornal de grande circulação. O título sentencia: “Nos EUA, a realidade supera a ideologia” [1]. Fiquei curioso. Não entendi o que isso poderia significar. Em suma, o texto defende que a segurança, a educação e o respeito à diversidade sustentam uma realidade indiferente a discussões ideológicas nos Estados Unidos da América.
Diante da fragilidade da argumentação exposta, resolvi confrontá-la minimamente à realidade empírica. Não basta passar um período de tempo em determinado local para atribuir a ele verdades empíricas. É preciso disposição para investigar, compreender o contexto, a história e as relações que se travam na sociedade em questão. As ciências sociais disponibilizam uma boa via de análise, seja pelo viés da economia, da sociologia, da antropologia ou da ciência política. Como não tenho a intenção de produzir uma pesquisa de caráter aprofundado sobre a temática, reflito sobre algumas considerações capazes de complexificar o debate.
A segurança pública nos Estados Unidos, por certo, tem as suas qualidades. Mas a superpotência está longe de ser o reino da paz e da tranquilidade. Uma análise para além do que os olhos podem enxergar em alguns dias demonstra isso. Richard Florida, economista e professor da Universidade de Toronto, indica que muitas cidades estadunidenses ostentam taxas de homicídios comparadas às de países considerados muito violentos. New Orleans compara-se a Honduras; Houston ao Equador; Washington ao Brasil. Desde 1982, ocorreram 61 assassinatos em massa em 30 estados do país [2].
No que tange à eficiência dos serviços públicos, restam controvérsias. A saúde está na mão do setor privado, e o Obama Care é percebido por muitos como um plano comunista. Na educação, também restam controvérsias. O vasto estudo dos professores da Universidade da Califórnia e de Harvard, Greg Duncan e Richard Murnane, evidencia que a desigualdade social nos Estados Unidos interfere na qualidade da educação. Quem tem melhores condições econômicas tende a ter uma escolarização de maior qualidade [3].
O argumento mais falacioso de todos: a lei funciona independente de classe social e o respeito à diferença impera. Ora, qualquer procura rápida aos meios de comunicação desmente essas sentenças. Jovens negros são reincidentemente assassinados pelas polícias, vivem na pobreza ou “apenas” sobrevivem ao racismo. Mães choram pelos seus filhos, cidades são saqueadas e protestos se disseminam [4]. Com efeito, as “ideias toscas” dos republicanos não estão isoladas. Outra vez, o professor Richard Florida demonstra que os conservadores são maioria em diversas regiões estadunidenses [5]. O Tea Party não é um clubinho qualquer.
De fato, os Estados Unidos têm suas qualidades e elas podem e devem ser valorizadas. Não vejo problema algum nisso. Porém, quando deixamos de lado um confronto sério dos argumentos com a realidade empírica e, ignorando isso, dizemos que a realidade demonstra determinado argumento, acabamos reproduzindo opiniões que se afastam da complexidade do real inerente às sociedades contemporâneas. Seria possível discorrer sobre inúmeros outros tópicos. Há uma vasta estrada entre o oito e o 80.
Referências
[1] http://zh.clicrbs.com.br/…/mauricio-tonetto-nos-eua-a-reali….
[2] (a) http://oglobo.globo.com/…/doze-fatos-sobre-armas-os-estados…;
(b) http://www.citylab.com/…/gun-violence-us-cities-compa…/4412/.
[3] https://www.russellsage.org/publications/whither-opportunity.
[4] (a) http://zh.clicrbs.com.br/…/prefeita-de-baltimore-declara-to…;
(b) http://brasil.elpais.com/…/internaci…/1416878092_531438.html.
[5] http://www.theatlantic.com/politics/archive/2012/02/why-america-keeps-getting-more-conservative/252995/.
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