ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Qual projeto queremos?

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Cortar o cabelo é uma tarefa complexa. Os estabelecimentos que oferecem o serviço trazem consigo um ambiente especial. Rola todo tipo de conversa. Costumo apenas observar, interagindo com educação e monossílabos.

Naquele dia, de repente, a escuta da conversa ao lado chamou a atenção. Duas distintas senhoras dialogavam cheias de si.

- Tu viu? O cara fuzilado na Indonésia, o traficante brasileiro?

- Vi! Bem-feito! Tem que matar mesmo! Matar vagabundo!

O cheiro de morte tomou conta de mim. Viajei. Vi sangue, espada e cruz ao mesmo tempo. Indaguei-me em qual projeto de sociedade as distintas senhoras acreditavam. Algo análogo a uma equação em que “errou” é igual a “morreu”.

Questionei-me se não estava assistindo ali, ao vivo e a cores, ao retrato da falência do projeto moderno, iluminista, racional e pelo bem-estar e dignidade humana. Tamanha empreitada moderna, notadamente cheia de avanços e revoluções, estaria amargando as sarjetas dos tempos atuais?

Ainda deu tempo de lembrar duas coisas. Se é verdade que o Esclarecimento trouxe incríveis inovações tecnológicas e científicas, entregando em parte o que prometeu, também é verdade que se construiu apoiado numa violenta dominação da população europeia e suas ideias sobre os demais povos do planeta. Apoiado no saque ao ouro de Minas Gerais, à prata de Potosí. Na escravização de milhões de africanos. Na imposição de uma doutrina religiosa as diversas culturas cujas crenças eram consideradas coisa do demônio.

Será que as fissuras da modernidade, na prática, sobretudo entre os habitantes do sul global, entre os esfarrapados do mundo, podem ter responsabilidade sobre o discurso de ódio presente por aí? Será possível reconstruir o edifício do Iluminismo, com a matéria-prima da liberdade, da igualdade e da fraternidade trabalhada por corações e mentes vivas e não somente como ícones inertes?

O quanto a modernidade falhou eu não sei e nem quero mensurar no momento. Há aqueles que defendem bem o sucesso de muitas das promessas modernas. De todo o modo, desperto daquele transe, cercado por tesouras e distintas senhoras sedentas por sangue, restou a inquietude de procurar entender as disputas pelo projeto de sociedade que estamos produzindo/reproduzindo dia após dia.

Será um projeto ainda moderno? A propósito, deve ser?

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