Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor
Sociólogo e Professor
O
ano mal começou e o tempo continua voando. Coisas da vida. Olho pela
sacada a correria na cidade e fico pensativo: “pra onde vai essa porra
toda?”. Não tem como saber com exatidão. Não dá pra prever o limite e as
consequências da ofensiva autoritária e conservadora que toma conta do
país. Parece haver um movimento global nessa direção. Num piscar de
olhos, penso o quanto tenho sorte por ter conseguido criar um conjunto
de relações com pessoas que me mostram, no cotidiano, todas as bonitezas
da vida.
Quando
volto a pensar no que está em jogo hoje, por vezes me vêm à cabeça a
questão da “razão” nos conflitos políticos, sociais e morais. Será que
viramos bestas irracionais? Se é fato que convivemos dia após dia com os
problemas que nos afetam, desde a deterioração aprofundada da natureza,
até múltiplas violências, opressões e desigualdades, cabe perguntar por
qual motivo não usamos a razão para deixar as coisas melhores? Por que o
projeto das sociedades organizadas racionalmente segue em crise e, para
alguns, beira ao inevitável colapso? Como alguém pode justificar a
barbárie com um pretenso uso da razão?
Na
Filosofia e nas Ciências Sociais, coexistem distintos caminhos para
discutir esse tema. Noutros textos percorri alguns deles¹. Em geral,
existem os apologistas da razão a qualquer custo. Existem outros que a
desconstroem sem piedade. E têm os que tentam reconstruir as reflexões
sobre a razão com uma abordagem crítica e pluralista. Por aí, uma linha
que me instiga vê a razão em duas dimensões: a razão objetiva e a razão
subjetiva. A razão objetiva se manifesta de duas maneiras. A primeira
está presente como uma estrutura que coordena a vida das pessoas em
relação a um fim último definido de modo racional. A segunda se reflete
no pensamento enquanto forma de compreensão dessa estrutura que atua na
realidade. Já a razão subjetiva é simplesmente uma função de coordenação
entre meios e fins. Os fins são definidos pela razão objetiva, e a
potencial junção das duas dimensões completaria a ideia de “razão”.
Quase
um profeta, Max Horkheimer, filósofo do movimento conhecido como Escola
de Frankfurt, propõe ambas as categorias numa obra cada vez mais atual,
publicada em 1947, no calor do final da Segunda Guerra². “O eclipse
da razão” parte da premissa de que o triunfo das modernas sociedades
capitalistas (e sua dominação de classe, colonialista e patriarcal) fez
com que a razão subjetiva tomasse conta da razão objetiva. Com isso, a
razão teria se transformado em mero instrumento, somente um mecanismo de
seleção de meios eficientes para determinados fins relativos aos
interesses dos indivíduos.
Isso
significa que teríamos perdido a capacidade coletiva de buscar um fim
último, cujos horizontes fossem refletidos e pensados crítica e
racionalmente. Nessas sociedades, a razão passa a ser entendida pelas
pessoas como um operador prático relacionado aos seus interesses
particulares, reificando a si mesma a tal ponto que ela pode vir a
expressar apenas a autopreservação do indivíduo. A supremacia exclusiva
da razão subjetiva teria aberto as portas ao nazifascismo e demarcado a
crueldade extrema e o genocídio racista no contexto de uma civilização
que pregava a liberdade, a igualdade e a fraternidade.
Quando
penso no que vai dar essa porra toda, ao contrário de desconstruir a
razão, namorar a irracionalidade ou sobrevalorizar a experiência por si
só, penso que um dos pontos importantes para entender os nossos tempos
passa por reconstruir o sentido da razão
e como ele se atualiza nas relações sociais. Para isso, abrir o debate a
perspectivas que ultrapassem a tradição ocidental pode ser um bom
começo, caminhando para uma racionalidade mais “cosmopolita”. Aliás, a
razão precisa ter um caráter crítico, no intuito de fomentar a qualidade
cívica do debate público e democrático sobre o bem-estar coletivo e a
liberdade, fundado em argumentos, razões e motivos.
O
problema, diria o sábio, é combinar tudo isso com o outro time. A
conclusão mais perigosa acerca de uma sociedade cujos membros agem
conforme uma racionalidade que só opera distinguindo meios e fins
pessoais, num espaço social marcado pela violência e pelas
desigualdades, acaba apontando para uma escalada da barbárie. Podemos
chamar também de uma escalada do autoritarismo e da opressão. Os
cínicos, por sua vez, poderão chamar de “A escalada do homem de bem” ou
“A escalada dos homens de bens”. Faria pouca diferença.
Notas
¹
Uma das “lentes” que acredito promissora para pensar a atualidade
encontra-se na articulação teórica de Jessé Souza, unindo a teoria das
lutas simbólicas (Pierre Bourdieu) com uma hermenêutica da moralidade
moderna (Charles Taylor).
²
O livro “O eclipse da razão” (1947) se situa entre dois outros textos
de Horkheimer sobre o mesmo assunto. “O fim da razão” (1941) ensaia a
noção de que a razão vai se tornando um mero instrumento de coordenação
entre meios e fins pessoais, até que não haja mais lugar para a razão, a
não ser a autoconservação individual. Depois, o autor supera essa
abordagem com a tipologia da dupla dimensão: razão objetiva e razão
subjetiva. Em “Dialética do esclarecimento” (1947), Horkheimer e Theodor
W. Adorno avançam nesse debate, chegando ao conceito de “razão
instrumental”.
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