Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor
Sociólogo e Professor
A cidade grande tem dessas: do nada, é possível conhecer alguém
visivelmente fora da casinha e, ao mesmo tempo, como diz a expressão
popular, “mais realista que o rei”.
Era tarde da noite, quando a
gente desceu do carro pra descarregar as malas. Em menos de um minuto, o
rapaz nos abordou, tentando se equilibrar numa árvore ao nosso lado:
- Eu disse... Vai rápido, não rateia, logo vai chegar um maloqueiro qualquer pra nos pedir alguma coisa ou até nos achacar.
Com as malas e coisas de acampamento nas mãos, respondi com um sorriso
amarelo, concordando sem concordar. Ele continuou, contando sua
história, dizendo que não era ladrão, que há poucos meses vivia numa
barraca laranja, embaixo do viaduto ali da esquina.
- Tive que
sair da vila, o pai da minha mina não me curte. Ele é da Civil, e quando
ela engravidou e eu perdi o emprego, disse pra ela escolher entre ficar
em casa ou ficar comigo.
Lamentamos todos a situação. O jovem já
não conseguia se equilibrar, embriagado que estava. Trocava algumas
palavras, soluçava frases soltas, mas, no fim, as coisas acabavam
fazendo sentido.
- Na real, precisava de uma grana pra comprar
fralda. Lá na vila vendem fralda avulsa, aqui não. Precisava da grana da
passagem, da fralda, da comida...
Grana mesmo a gente não tinha.
Já não cabia nada nas nossas mãos e tínhamos que subir com as coisas.
Braços e costas doíam. Sem saber como agir, seguimos escutando o garoto,
que, no auge do trago, não segurava mais as emoções.
- Isso não
tá certo. Vão ali ver... Não tá certo. Ela tem meses de vida. Ela é
linda, ingênua, um pedacinho de futuro jogado numa barraca suja, comendo
o que sobra e disputando espaço com rato e barata.
De súbito, o
assunto mudou para a fome que ele sentia. Pedi pra me dizer o seu nome e
esperar na porta do prédio. Largaria as coisas e traria algo pra ele
comer. Enquanto entrávamos, ele seguiu seus devaneios de bêbado,
escancarando uma realidade que muitos não querem ver.
Ao descer
com alguns pães e trocados, encontrei Amilton estirado na porta do
edifício. O ponto final do ébrio. Balancei o guri até ele recobrar a
mínima consciência. Parecia nada entender. Entreguei os pães e os
trocados e pedi pra ele agilizar as fraldas da pequena que aguardava há
poucos metros dali.
Amilton repetiu “agilizar as fraldas”,
abocanhou um pedaço enorme de pão e agradeceu. Fechei a porta e subi
pensativo. Em casa, nossas dores nos braços e nas costas se misturavam
com uma tristeza profunda. A mesma tristeza profunda que Amilton
transbordava entre loucuras e rompantes de lucidez. Bastava um pouco de
atenção para perceber.
.