ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 1 (16)

América do Sul, Brasil,

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Como riem as hienas

Eduardo Barcellos Cientista Político


Ando atônito. Nunca pensei que utilizaria essa palavra para descrever um estado de espírito – atônito. Em seu significado, aqui faço uso total; mistura de admirado, confuso, estupefato, espantado.

Muito me senti o Senhor da Apreensão dos Escaninhos da Análise Social. Baita título pomposo. Mentira de uma alucinação, com personagens mais realistas do que o rei.

Despido da pretensão de compreensão total, percebo. Percebo que o Brasil-político que antes via, hoje é ficção. Eu promulgava a bula: segundo os conceitos vigentes na Ciência Política, vivemos numa democracia. Sentenciava, na verdade.

Pois bem. Peguei esses mesmos conceitos, semanas atrás, e me surpreendi, como dito, atônito. Algo havia se transformado no meio do caminho. E não era apenas meu ser.

Livre, como tenho estado, da busca do categórico, me permito finalmente o hipotético. Kant ficaria alegre, apesar de me condenar pelo mal uso do conhecimento. Oxalá, que assim seja!

Assim livre, me permito extrapolar as raias do duro conceito, transbordando para a rochosa realidade que formamos, ao materializá-la.

Extrapolando, digo, sem receio, ou rodeios: me parece que nem nos conceitos minimalistas de democracia o Brasil anda se enquadrando. “Me passe o foco, foto fora de foco”: escutei isso num rap (instrumento de sabedoria popular, como diria um amigo, nomeado Bernardo Caprara).

Como afirmado, não quero aqui esgotar conhecimento, até mesmo porque ele nunca se esgota. Fonte inesgotável. Em assim sendo, trago superficialmente duas abordagens sobre a democracia, uma minimalista em-si, e uma pluralista, pouco mais abrangente.

Visto que desejo evitar conduzir o Brasil-político ao banco dos réus (em função da presunção de inocência), privilegio o conceito minimalista, mais fácil de ser preenchido, começando por ele.
Competição livre através do voto livre”, dizia Schumpeter. 

A concepção pluralista, tendo Robert Dahl como âncora, entende da seguinte forma. “Todos os cidadãos plenos devem ter oportunidades plenas”; de quê? “De formular suas preferências; de expressá-las a seus concidadãos e ao governo através da ação individual e coletiva; e de ter suas preferências consideradas na conduta do governo, ou seja, consideradas sem discriminação decorrente do conteúdo ou da fonte da preferência”. Além dessas oportunidades, as instituições da sociedade devem fornecer oito garantias: liberdade de formar e aderir a organizações; liberdade de expressão; direito de voto; elegibilidade para cargos públicos; direito de líderes políticos disputarem apoio e, mais, disputarem votos; fontes alternativas de informação; eleições livres idôneas; instituições para fazer com que as políticas governamentais dependam de eleições e de outras manifestações de preferência.

Talvez tenha me alongado. Paciência.

O que anda acontecendo no Brasil? Ao menos no Brasil-político?

A liberdade de formar e aderir a organizações está ameaçada. A liberdade de expressão está recebendo tratamento repressivo digno de episódios da ditadura. O direito de líderes políticos disputarem voto? Combatido pelos“donos do poder”. É aquilo que um ilustre cientista político nos lembra: após entrarem no “jogo”, os recém egressos buscam vetar aos demais a sua entrada. É o velho lema: “para o meu lado, pode”. A garantia de “outras manifestações de preferência”? Igualmente abalada, como o episódio de 15 de outubro no Rio de Janeiro escancara, e outros episódios Brasil afora também – perseguição política a anarquistas, filiados a partidos oposicionistas de esquerda, e cidadãos livres de quaisquer organizações político-institucionalizadas. E as "fontes alternativas de informação"? A questão do marco civil da internet escancara, adicionada a busca do Senado para controle de usuários e acesso.

Estamos saindo de uma semi-oligarquia para uma semi-hegemonia. Mui distantes de uma sonhada poliarquia (isto é, aproximação possível, factual, do "ideal democrático"). O pêndulo, por estas plagas brasílicas, desconhece o caminho do meio. Ele é perdulário por Constituição.

Mas e o conceito minimalista de Schumpeter?

A competição livre começa a ser abalada. Quando uma gama plural de representações sociais e de mundo é vetada de adentrar o espaço institucionalizado da Política, o que temos é o fomento do caos.
Quando um partido, chefiado pelo cacique Paulinho da Força, recebe aval da Justiça Eleitoral e um partido, como a Rede, recebe veto, há escancaramento da falta de institucionalização dos órgãos de Poder. Pouco democrático.

O PT não entende o que anda acontecendo. Ele não representa mais a “voz que vem das ruas”, eis o que acontece. Por isso ele não entende. O PT virou estamento.

Na democracia, quando a voz não recebe atenção, inexiste lealdade, existindo “saída”. E a saída, pela falta de representação, corre o risco de ser pela porta dos fundos – arrombando-a.

A sede de PODER, em detrimento da sede de JUSTIÇA (social, humana, política), conturba o organismo coletivo.

Vivemos convulsões. E quando elas existem é porque falta harmonia orgânica; correspondência entre as partes que formatam, sustentam e formulam o todo.

A voz tem de ser representada, do contrário, caos.

Afora esse quesito meramente político, há um aspecto mais grave – o aspecto humano.

Está escancarado aos que têm olhos de ver, que a humanidade está falida. Falida ética, moral e psicologicamente.

Vemos ódios se cruzarem: de um lado, o ódio encarnado por Black Blocs, de outro, o ódio encarnado por policiais. Eis o que defende Luiz Eduardo Soares.

Ódio com ódio resulta em desumanização do ser individualizado, do ente coletivo e do ambiente em que ambos gravitam na experiência. Digo eu.

Governantes despreparados, os quais sofrem de grave sociopatia, estimulam o caos, fomentando ódios.

Empresários da mídia formulam arquétipos vulgares, e trabalham um simbolismo tortuoso, confundindo as mentes em que tocam.

O órgão Judiciário mexe com simbolismos errados, abalando outro órgão, o Legislativo; corroendo ainda mais, e em velocidade exponencial, a frágil legitimidade de nossa quase-democracia.

Não vamos aliviar aqui os indivíduos – grande parte de nós nos desviamos e justificamos a violência, confusos como estamos.

Sei que tudo o que ocorre, ocorre por alguma razão. Muitas vezes, ou na maioria delas, não as identificamos, justamente por nossa limitação. Não somos os Senhores da Análise Social, e da apreensão total da Realidade.

Mesmo assim, acredito que podemos formar um novo mundo, estabelecer novas conexões, estimular novas relações.

Corremos o sério risco de perder muitas das conquistas alcançadas rumo à democracia. Uma regressão negativa.

Vejo o colapso de um mundo vivido até então. A isto, presto louvor e graças.

Contudo, vejo hienas rindo ininterruptamente. Soltas a vagar pela sociedade brasileira.

Elas são os mantenedores da ordem. Estão na política; estão na burocracia; estão assumindo participação no Estado via concurso público; estão em suas casas, assistindo televisão; estão na polícia; estão nas Universidades; estão ao nosso lado. Estão, até mesmo, em nós.

As hienas riem. E elas riem na cara da democracia. Riem na cara de todos. Riem na, e da, cara do Brasil. 

Elas riem porque o mundo permanece. Negam a Humanidade. E dão gargalhadas porque recebem apoio de mim, de ti.

Elas riem. Mas o mundo chora.
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