ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Cego com visão?

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Aconteceu na rua. Daquelas lições cotidianas. Esperando o ônibus, duas pessoas conversavam sobre os problemas do país. Um cego e um rapaz com a visão perfeita. A parada estava repleta de trabalhadores. O sol ainda não anunciava o dia por completo. Afirmava o cego:

- Tem que ver o seguinte... É muita desigualdade. De dinheiro. De poder. Entre homens e mulheres. Entre orientações sexuais. Entre etnias. Entre profissões. Entre possibilidades. Tudo muito desigual.
- É, mas isso não é desculpa. Quem quer, corre atrás.
- Sim, tudo bem. É importante correr atrás. Certo. Mas as condições da corrida fazem diferença.
- O importante é correr atrás. Esse país é um lixo porque todo mundo quer tudo de mão beijada. Quem tem é porque correu atrás.

O cego suspirou, quase impaciente. Escutou um barulho de ônibus se aproximando.

- Eu não acredito num mundo em que as pessoas não corram atrás. Pelo contrário, acho que para acreditar que vale a pena a dedicação, algumas condições mais equitativas são o ponto de partida. Uma mulher com liberdade de ação e pensamento. Uma família pobre com boa escolarização. Enfim, pode me dizer qual é a linha desse ônibus que chegou?

Silêncio. Quando o veículo arrancou, uma moça atenta ao diálogo, quieta até então, acrescentou sabedoria àquele dia que recém iniciava.

- Ele já foi. Saiu rindo. Não era o seu ônibus, eu aviso quando chegar. Na boa, ainda dizem que o cego é o senhor…

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