ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

domingo, 20 de dezembro de 2015

Autoanálise 2015: parte 1

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

O meu ano letivo ainda não acabou, mas a essa altura do campeonato já sinto a necessidade de refletir sobre o que passou em 2015. Ao invés de propor uma reflexão sobre algo geral, algo relacionado ao coletivo, desta vez me cabe uma espécie de autoanálise. Penso em três pontos críticos do meu trabalho de escrita e de sala de aula, em especial: a questão da cientificidade; o viés político; e, não menos importante, a relação entre teoria e prática.

O papel da ciência na produção do trabalho sociológico é algo que, ainda que pareça um papel óbvio, está sempre posto em discussão. Seja de modo particular, quando pesquisadores e estudantes de outras áreas não nos conferem qualquer grau de rigor. Seja com um descrédito relativo à própria ideia de que é possível a existência de um conhecimento que seja mais próximo daquilo que se costuma chamar de verdade. Dessa segunda conclusão um horizonte enorme se abre. Enorme e com consequências delicadas.

No embate entre saber que o uso de métodos associados ao rigor teórico é, na investigação empírica das relações sociais, um caminho de produção de conhecimento aprofundado, e a percepção de que outras leituras de mundo constroem narrativas ricas que, vira e mexe, são fidedignas ao contexto em que se desenvolvem, eu procuro fugir da história única. Encontro-me com a escritora nigeriana Chimamanda N'Gozi Adichie, na medida em que identifico a história única sobre um povo, ou mesmo, adiciono à fala da autora, um grupo social qualquer, como formadora de estereótipos.

O problema dos estereótipos não é o problema de que eles sejam mentirosos, mas é o grave problema de que eles se mostram incompletos. Sem dúvidas, vejo no método científico o conjunto de procedimentos mais primoroso para a investigação do mundo natural e social. Mas vejo que essa narrativa, tornada hegemônica e hegemonizante, é também incompleta. Acaba por fechar janelas de produções de conhecimentos mais "soltos" que podem, em determinadas circunstâncias, expressar o que se passa na vida social com correspondência ao que realmente se passa na vida social. Janelas que podem ser abertas pela literatura e por certas tradições orais.

Só que tem um detalhe delicado e perigoso nisso tudo. Frente ao cotidiano real das sociedades modernas, centrais ou periféricas, marcado por violências, desigualdades de oportunidades, opressões, enfim, tristezas individuais e coletivas, frustrações de todas as estirpes, o poder se manifesta também na produção e na circulação de histórias sobre si e sobre os demais. Adichie aponta, nesse sentido, para um caminho que eu completaria com o acréscimo daquilo que o sociólogo Pierre Bourdieu chamou de habitus. A noção precisa de que temos sistemas de disposições adquiridas, duráveis, incorporadas e que se forjam sob dois tipos de capitais, o econômico e o cultural.

Ora, num país como o Brasil, num ano como o de 2015, vimos que a arena pública se configurou num vale-tudo de histórias únicas incorporadas, cujos habitus de classe dos seus protagonistas demonstram disposições para um enfrentamento bestial. Nessas histórias únicas há fileiras de estereótipos, que trazem suas correspondências com a realidade, mas que inundam a vida coletiva com as piores consequências da sua incompletude: a polarização extremista e a continuidade cada vez mais fanática das histórias únicas. Por outro lado, espalham-se histórias únicas que não correspondem nem de longe com o real, somente no intuito da difamação, do ataque ao inimigo discursivo.

Podemos ver isso na briga descontrolada entre coxinhas e petralhas. Se não deixa de ser verdade que os liberais ou neoliberais pelo mundo muitas vezes estão de braços bem dados com regimes autoritários e repressores, além de se mostrarem pouco preocupados com a exploração do trabalho pelo capital, não obstante é verdade que a defesa das liberdades individuais e dos direitos humanos compete, ao menos em tese, ao ideário de uma sociedade justa, cuja garantia da dignidade não ficará apenas no papel.

Se não deixa de ser verdade que marxistas e/ou anarquistas pelo mundo muitas vezes estão de braços bem dados com regimes autoritários e repressivos, ainda que por premissa se mostrem preocupados com a exploração do trabalho pelo capital, também é real que a pauta dos direitos e das garantias constitucionais do indivíduo compete, ao menos em tese, a uma sociedade na qual os bens e recursos escassos estarão justamente distribuídos.

Salta aos olhos a infertilidade da reprodução polarizada de histórias únicas incorporadas através de um ódio de classe, além de racial, misógino e homofóbico, o que remete, por sua vez, a uma resposta igualmente permeada de incompletudes para com os outros, que distancia o entendimento claro das coisas e torna tudo ainda mais nebuloso e violento. Há muito absurdo ganhando força e embasando justificativas injustificáveis. Aí o papel da ciência, não castradora de diferentes linguagens capazes de iluminar nossos caminhos, ciência cercada por um rigoroso tratamento teórico-metodológico das evidências, se fortalece e ganha uma relevância ímpar.

Tenho consciência de que o método científico, o estudo sistemático e minucioso, nada menos do que metódico, no que tange às relações sociais, é uma estrada sem volta e fundamental para conseguirmos erguer e sustentar o edifício de uma sociedade movida pela liberdade, igualdade e fraternidade. Contudo, fazer ciência social, para mim, é uma tarefa pesada, demorada, exaustiva e muito complexa. É um desafio constante que tenho tentado enfrentar no âmbito acadêmico. Desafio teórico e metodológico.

No cotidiano, porém, eu me sinto incompleto se me mantenho tentando encontrar na segurança do trabalho investigativo sistemático e de longo prazo as únicas narrativas para comunicar e dialogar sobre o que estamos vivendo. Sinto que a todo instante sou impelido a fugir da história única, a fomentar algo mais do que a procura metódica da correspondência com o real detalhado, classificado e organizado nos seus pormenores.

Tento narrar histórias múltiplas, tanto no formato, quanto no conteúdo. Assim, jogo cartas perigosas, arriscando a cientificidade global do conjunto do meu fazer sociológico. E me vejo precisando encarar o segundo ponto desta autorreflexão, o viés político. Eis o tema para um próximo texto.

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