Bernardo
Caprara
Sociólogo e Professor
Sociólogo e Professor
As questões políticas, em 2015, ocuparam um espaço muito grande
nos debates públicos. No meu trabalho de escrita e de sala de aula não foi
diferente. Há dois pontos críticos que me preocupam com frequência nesse
quesito. O primeiro diz respeito a como definir um posicionamento político que
me pareça adequado. O segundo abrange os limites do posicionamento político
adotado pelo professor/pesquisador na relação com os estudantes e com a pesquisa
social.
Gostaria de começar a refletir sobre o posicionamento político
que me parece adequado elencando três dimensões que acredito indissociáveis: o
planeta, a sociedade e o indivíduo. Ainda que tenha listado da dimensão mais
ampla para a mais particular, partirei das considerações políticas sobre o
indivíduo até chegar naquelas sobre o planeta. Não por acreditar que a “mudança
começa pelo indivíduo” ou que o “autoconhecimento é a grande mudança”, mas
porque partir do indivíduo me aproxima a qualquer leitor deste texto. Afinal,
todos somos indivíduos humanos.
Fugindo da história única, procurando narrativas múltiplas, não
tenho problema de dialogar com o filósofo estadunidense, liberal e de direita,
John Rawls, conhecido pela sua teoria da justiça como equidade. Na minha
interpretação do autor, destaca-se a proposta de que as virtudes das
instituições sociais estão associadas ao seu caráter de justiça, se elas
conseguirem contemplar o máximo de liberdade possível para os indivíduos numa
sociedade justa (princípio da liberdade), do ponto de vista das distribuições de
oportunidades e da ideia de que as desigualdades sociais e econômicas só podem
existir se, de alguma forma, trouxerem vantagens para todos (princípio da
igualdade).
Trata-se de um argumento liberal, que pressupõe a defesa do
indivíduo frente à sempre possível tirania do coletivo. A sugestão de Rawls para
justificá-lo remete ao que chamou de posição original, uma espécie de exercício
imaginário que nos colocaria um “véu da ignorância”, tornando possível um
pensamento equitativo. Com o véu instalado, ninguém seria capaz de saber como
seria o seu futuro, a qual classe social pertenceria, a qual etnia, qual seria a
sua orientação sexual e assim por diante. Desta forma, estaríamos em equidade.
Nenhum indivíduo, mesmo os autointeressados, gostaria de passar fome, sofrer
violências ou opressões. Caberia às instituições sociais organizar e evitar
distorções na distribuição de bens e recursos escassos, garantindo o desfrute da
liberdade para cada indivíduo.
A proposta de Rawls me agrada porque abre um canal para diálogo
com a direita, à medida que fortalece a defesa da liberdade individual como
premissa inconteste. Por certo, Rawls não me ilumina muito mais do que até a
abertura dessa fenda comunicativa, mas a partir dela busco rejeitar
politicamente a histórica única. Além disso, a teoria da justiça como equidade
permite pensar as instituições sociais modernas sob o prisma de uma das suas
atribuições centrais, que é a tarefa de regular a distribuição de direitos e
deveres.
Depois de refletir sobre a liberdade individual, o ponto
candente recai sobre a dimensão da vida em sociedade. Para falar sobre isso,
dois autores me parecem especialmente relevantes, em função das suas pesquisas e
argumentos. O economista francês Thomas Piketty, com uma incursão
macroanalítica; e o sociólogo brasileiro, atual presidente do IPEA, Jessé Souza,
com um desiderato apropriado para dissertar sobre a nossa realidade e uma
reflexão interessante sobre a nossa estrutura de classes.
A leitura das recentes obras de Piketty não aconselha deixarmos
de lado a magnitude da desigualdade econômica em escala mundial. Sem esgotar os
debates, o fato é que Piketty aponta para o desenvolvimento de um capitalismo
global cada vez mais patrimonial, isto é, no qual os principais postos da
economia são preenchidos não por sujeitos merecedores e recheados de talentos
(justificativa meritocrática eloquente entre liberais), mas por grupos
familiares que reproduzem as suas riquezas a partir da herança e se concretizam
nos lugares de poder e de propriedade da riqueza bruta. Se Piketty estiver
certo, o seu projeto alternativo se faz muito relevante, visto que propõe um
sistema mundial de tributação de acordo com renda e riqueza, uma espécie de
mecanismo internacional de organização e distribuição justa de oportunidades de
acesso aos bens e recursos escassos.
Com Jessé Souza, desmontamos a ideia de que os últimos governos
brasileiros, que podem ser chamados de neodesenvolvimentistas, por atuarem desde
uma grande frente interclassista com o objetivo do crescimento econômico
dependente e alguma distribuição de renda, lograram o êxito de transformar o
Brasil num país de classes médias, em que a desigualdade perdeu fôlego. Os
trabalhos de Souza demonstram que essa é uma concepção irreal. Demonstram que o
período de bonança da frente neodesenvolvimentista abriu algumas portas para o
que Souza chamou de batalhadores e ralé estrutural, mas não
reorganizou as instituições sociais de maneira a buscar a equidade ou a
distribuição justa de oportunidades de acesso a bens e recursos escassos. Não
modificou, sobretudo, as disposições que nós temos incorporadas e que nos fazem
tratar determinados indivíduos como subcidadãos ou merecedores de menos direitos
do que outros.
Há, ainda, a dimensão do planeta. Não tenho os atributos
necessários para alongar a conversa por aqui. Mesmo assim, parece evidente que
qualquer projeto político no século XXI demandará explicações detalhadas sobre
como as sociedades humanas irão tratar a sua casa maior. Não podemos nos
esquecer de que somos sociedade e somos indivíduos habitantes do plano
terrestre. As maravilhas que o planeta oferece (mal definidas como recursos) não
são infinitas. Penso que a cada dia que passa, qualquer projeto político que se
preze precisará enfrentar o imperativo desafio de aproximar ecologia e
desenvolvimento, numa procura sustentável, e que pode trazer das populações
tradicionais experiências de integração com o planeta, muito mais profundas do
que as nossas.
Em resumo, sinto uma grande lacuna que não consigo preencher,
seja do ponto de vista teórico, seja do ponto de vista prático da política
nacional. Considerando a correlação da estrutura de classes na atualidade, com
monstruosas desigualdades, e considerando que poucas vezes na história
privilégios foram abandonados por seus detentores, sem que houvesse pressões
advindas dos desfavorecidos, como projetar uma sociedade com a presunção de
defesa irrestrita das liberdades individuais e com equidade na distribuição dos
bens e recursos escassos? Como projetar algo assim num modo de produção em que o
conflito entre capital e trabalho é uma das suas matrizes? Como pressionar as
classes privilegiadas sem aderir ao confronto violento revolucionário, confronto
inevitável na visão dos grupos marxistas e/ou anarquistas? Como conciliar tudo
isso com as questões do planeta e das populações tradicionais?
Sem respostas para tais indagações, resta falar sobre a relação
entre o posicionamento político do professor/pesquisador e a sua atuação na
pesquisa social e na sala de aula, enquanto docente. Pierre Bourdieu, sociólogo
francês, para o ofício da investigação sociológica, e Max Weber, clássico da
sociologia alemã, para a atuação pedagógica, ajudam a caminhar nesse terreno.
Eu confesso que não consigo crer na ideia de que é possível se
afastar completamente dos seus valores e posicionamentos políticos na feitura do
trabalho de pesquisa social. Acredito, contudo, que é possível uma objetividade
metodológica, escorada no que Bourdieu chamou de vigilância epistemológica. Em
outras palavras, mesmo que nossas escolhas se deem por meio daquilo que nós mais
apreciamos, vigiar a construção do conhecimento e instrumentalizar essa
construção através de métodos objetivos auxilia para que o resultado do
conhecimento não seja aquilo que gostamos ou acreditamos, mas aquilo que mais se
aproxima da realidade estudada.
Na sala de aula, bem como na escrita cotidiana, no fomento de
narrativas mais “soltas”, menos científicas, bebo em Max Weber pela distinção da
ética da responsabilidade e da ética da convicção. Traduzo essa distinção na
tentativa cotidiana de cumprir com dedicação e simplicidade a tarefa docente,
servindo à responsabilidade da tarefa de ensino e não às minhas convicções ou
posicionamentos políticos. Isso não significa ignorar nos debates em aula ou nos
textos cotidianos aquilo que acredito ou deixo de acreditar, minhas posições,
mas fazer a diferenciação clara entre o que é uma constatação empírica e o que
são julgamentos de valor. Sem ignorar que se trata de uma difícil empreitada.
Se utilizarmos os critérios do filósofo e jurista italiano
Norberto Bobbio para conceituar esquerda e direita na arena política, sendo a
primeira mais aderente ao ideário da igualdade e a segunda ao da liberdade, com
todos os meandros entre um e outro polo, creio que o meu posicionamento se
movimenta, com nenhuma dúvida, à esquerda. O contato com Rawls, disposto acima,
é uma tentativa de contemplar a liberdade nesse escopo e fugir da história
única. Tentativa em aberto e repleta de fragilidades. Tentativa que me coloca em
reflexão sobre o último desafio que me propus nessa autoanálise de 2015: a
problemática da teoria e da prática, do que proponho e exponho e suas relações
com o que faço.
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