ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Autoanálise 2015: parte 2

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

As questões políticas, em 2015, ocuparam um espaço muito grande nos debates públicos. No meu trabalho de escrita e de sala de aula não foi diferente. Há dois pontos críticos que me preocupam com frequência nesse quesito. O primeiro diz respeito a como definir um posicionamento político que me pareça adequado. O segundo abrange os limites do posicionamento político adotado pelo professor/pesquisador na relação com os estudantes e com a pesquisa social.

Gostaria de começar a refletir sobre o posicionamento político que me parece adequado elencando três dimensões que acredito indissociáveis: o planeta, a sociedade e o indivíduo. Ainda que tenha listado da dimensão mais ampla para a mais particular, partirei das considerações políticas sobre o indivíduo até chegar naquelas sobre o planeta. Não por acreditar que a “mudança começa pelo indivíduo” ou que o “autoconhecimento é a grande mudança”, mas porque partir do indivíduo me aproxima a qualquer leitor deste texto. Afinal, todos somos indivíduos humanos.

Fugindo da história única, procurando narrativas múltiplas, não tenho problema de dialogar com o filósofo estadunidense, liberal e de direita, John Rawls, conhecido pela sua teoria da justiça como equidade. Na minha interpretação do autor, destaca-se a proposta de que as virtudes das instituições sociais estão associadas ao seu caráter de justiça, se elas conseguirem contemplar o máximo de liberdade possível para os indivíduos numa sociedade justa (princípio da liberdade), do ponto de vista das distribuições de oportunidades e da ideia de que as desigualdades sociais e econômicas só podem existir se, de alguma forma, trouxerem vantagens para todos (princípio da igualdade).

Trata-se de um argumento liberal, que pressupõe a defesa do indivíduo frente à sempre possível tirania do coletivo. A sugestão de Rawls para justificá-lo remete ao que chamou de posição original, uma espécie de exercício imaginário que nos colocaria um “véu da ignorância”, tornando possível um pensamento equitativo. Com o véu instalado, ninguém seria capaz de saber como seria o seu futuro, a qual classe social pertenceria, a qual etnia, qual seria a sua orientação sexual e assim por diante. Desta forma, estaríamos em equidade. Nenhum indivíduo, mesmo os autointeressados, gostaria de passar fome, sofrer violências ou opressões. Caberia às instituições sociais organizar e evitar distorções na distribuição de bens e recursos escassos, garantindo o desfrute da liberdade para cada indivíduo.

A proposta de Rawls me agrada porque abre um canal para diálogo com a direita, à medida que fortalece a defesa da liberdade individual como premissa inconteste. Por certo, Rawls não me ilumina muito mais do que até a abertura dessa fenda comunicativa, mas a partir dela busco rejeitar politicamente a histórica única. Além disso, a teoria da justiça como equidade permite pensar as instituições sociais modernas sob o prisma de uma das suas atribuições centrais, que é a tarefa de regular a distribuição de direitos e deveres.

Depois de refletir sobre a liberdade individual, o ponto candente recai sobre a dimensão da vida em sociedade. Para falar sobre isso, dois autores me parecem especialmente relevantes, em função das suas pesquisas e argumentos. O economista francês Thomas Piketty, com uma incursão macroanalítica; e o sociólogo brasileiro, atual presidente do IPEA, Jessé Souza, com um desiderato apropriado para dissertar sobre a nossa realidade e uma reflexão interessante sobre a nossa estrutura de classes.

A leitura das recentes obras de Piketty não aconselha deixarmos de lado a magnitude da desigualdade econômica em escala mundial. Sem esgotar os debates, o fato é que Piketty aponta para o desenvolvimento de um capitalismo global cada vez mais patrimonial, isto é, no qual os principais postos da economia são preenchidos não por sujeitos merecedores e recheados de talentos (justificativa meritocrática eloquente entre liberais), mas por grupos familiares que reproduzem as suas riquezas a partir da herança e se concretizam nos lugares de poder e de propriedade da riqueza bruta. Se Piketty estiver certo, o seu projeto alternativo se faz muito relevante, visto que propõe um sistema mundial de tributação de acordo com renda e riqueza, uma espécie de mecanismo internacional de organização e distribuição justa de oportunidades de acesso aos bens e recursos escassos.

Com Jessé Souza, desmontamos a ideia de que os últimos governos brasileiros, que podem ser chamados de neodesenvolvimentistas, por atuarem desde uma grande frente interclassista com o objetivo do crescimento econômico dependente e alguma distribuição de renda, lograram o êxito de transformar o Brasil num país de classes médias, em que a desigualdade perdeu fôlego. Os trabalhos de Souza demonstram que essa é uma concepção irreal. Demonstram que o período de bonança da frente neodesenvolvimentista abriu algumas portas para o que Souza chamou de batalhadores e ralé estrutural, mas não reorganizou as instituições sociais de maneira a buscar a equidade ou a distribuição justa de oportunidades de acesso a bens e recursos escassos. Não modificou, sobretudo, as disposições que nós temos incorporadas e que nos fazem tratar determinados indivíduos como subcidadãos ou merecedores de menos direitos do que outros.

Há, ainda, a dimensão do planeta. Não tenho os atributos necessários para alongar a conversa por aqui. Mesmo assim, parece evidente que qualquer projeto político no século XXI demandará explicações detalhadas sobre como as sociedades humanas irão tratar a sua casa maior. Não podemos nos esquecer de que somos sociedade e somos indivíduos habitantes do plano terrestre. As maravilhas que o planeta oferece (mal definidas como recursos) não são infinitas. Penso que a cada dia que passa, qualquer projeto político que se preze precisará enfrentar o imperativo desafio de aproximar ecologia e desenvolvimento, numa procura sustentável, e que pode trazer das populações tradicionais experiências de integração com o planeta, muito mais profundas do que as nossas.

Em resumo, sinto uma grande lacuna que não consigo preencher, seja do ponto de vista teórico, seja do ponto de vista prático da política nacional. Considerando a correlação da estrutura de classes na atualidade, com monstruosas desigualdades, e considerando que poucas vezes na história privilégios foram abandonados por seus detentores, sem que houvesse pressões advindas dos desfavorecidos, como projetar uma sociedade com a presunção de defesa irrestrita das liberdades individuais e com equidade na distribuição dos bens e recursos escassos? Como projetar algo assim num modo de produção em que o conflito entre capital e trabalho é uma das suas matrizes? Como pressionar as classes privilegiadas sem aderir ao confronto violento revolucionário, confronto inevitável na visão dos grupos marxistas e/ou anarquistas? Como conciliar tudo isso com as questões do planeta e das populações tradicionais?

Sem respostas para tais indagações, resta falar sobre a relação entre o posicionamento político do professor/pesquisador e a sua atuação na pesquisa social e na sala de aula, enquanto docente. Pierre Bourdieu, sociólogo francês, para o ofício da investigação sociológica, e Max Weber, clássico da sociologia alemã, para a atuação pedagógica, ajudam a caminhar nesse terreno.

Eu confesso que não consigo crer na ideia de que é possível se afastar completamente dos seus valores e posicionamentos políticos na feitura do trabalho de pesquisa social. Acredito, contudo, que é possível uma objetividade metodológica, escorada no que Bourdieu chamou de vigilância epistemológica. Em outras palavras, mesmo que nossas escolhas se deem por meio daquilo que nós mais apreciamos, vigiar a construção do conhecimento e instrumentalizar essa construção através de métodos objetivos auxilia para que o resultado do conhecimento não seja aquilo que gostamos ou acreditamos, mas aquilo que mais se aproxima da realidade estudada.

Na sala de aula, bem como na escrita cotidiana, no fomento de narrativas mais “soltas”, menos científicas, bebo em Max Weber pela distinção da ética da responsabilidade e da ética da convicção. Traduzo essa distinção na tentativa cotidiana de cumprir com dedicação e simplicidade a tarefa docente, servindo à responsabilidade da tarefa de ensino e não às minhas convicções ou posicionamentos políticos. Isso não significa ignorar nos debates em aula ou nos textos cotidianos aquilo que acredito ou deixo de acreditar, minhas posições, mas fazer a diferenciação clara entre o que é uma constatação empírica e o que são julgamentos de valor. Sem ignorar que se trata de uma difícil empreitada.

Se utilizarmos os critérios do filósofo e jurista italiano Norberto Bobbio para conceituar esquerda e direita na arena política, sendo a primeira mais aderente ao ideário da igualdade e a segunda ao da liberdade, com todos os meandros entre um e outro polo, creio que o meu posicionamento se movimenta, com nenhuma dúvida, à esquerda. O contato com Rawls, disposto acima, é uma tentativa de contemplar a liberdade nesse escopo e fugir da história única. Tentativa em aberto e repleta de fragilidades. Tentativa que me coloca em reflexão sobre o último desafio que me propus nessa autoanálise de 2015: a problemática da teoria e da prática, do que proponho e exponho e suas relações com o que faço.
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