ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 1 (16)

América do Sul, Brasil,

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Autoanálise 2015: parte final

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Dentro de poucos dias, 2015 será página virada. Dos três pontos que considero mais críticos do meu trabalho de escrita e de sala de aula, já refleti sobre os dois primeiros: a questão da cientificidade e o viés político. Óbvio que muitos outros pontos poderiam entrar em pauta. Porém, para finalizar essa autoanálise, oriunda de um sentimento de respeito pelos estudantes, leitores e colegas que me dão a honra da sua parceria, resta falar um pouco sobre a relação entre a teoria e a prática.

Quando ambiciono enfrentar a questão crítica da relação entre teoria e prática, refiro-me àquilo que defendo na esfera da comunicação com os outros e àquilo que faço, na esfera da prática cotidiana. Não se trata de uma equação simples, bastando comunicar o que se faz e fazer o que se comunica. Por isso, da tentativa de fugir de histórias únicas, valorizando a ciência (mas não só ela), e na tentativa de produzir histórias múltiplas à esquerda, acabo distinguindo três pontos no relacionamento entre teoria e prática: a disposição para um diálogo verdadeiramente democrático, a polêmica do “politicamente correto” e a questão do consumo numa sociedade capitalista.

Tenho investido na proposta de fomentar um pensamento que não seja binário. As polarizações, nesse intuito, mostram-se muito prejudiciais. Ao polarizar e estacionar em um polo, o espaço para a construção ou para o aprendizado mútuo perde muitas das suas possibilidades. Se não estou disposto a escutar, não pretendo sequer considerar o argumento alheio, fica difícil crescer em termos de conhecimento. Tenho defendido que, em meio a tanto ódio e violência, sejam físicas, verbais ou emocionais, fomentar disposições para diálogos verdadeiramente democráticos é uma tarefa para ontem.

Numa trilha como essa, paciência, escuta e reflexão funcionam como premissas. E é aí o local em que reside uma dificuldade muito grande para este que vos escreve. Como que num pântano do qual não consigo me afastar, tenho percebido as minhas imensas dificuldades em realizar aquilo que proponho como fundamental. Tenho tido muitas dificuldades para fomentar diálogos abertos, pacientes, amigáveis, argumentativos e formatados de uma maneira em que todos envolvidos ganhem alguma coisa com aquele acontecimento.

É paradoxal. Em sala de aula, em diálogos com pessoas mais distantes, rapidamente consigo recordar que essa é uma postura imperativa nas minhas reflexões individuais. Costumo mobilizar grandes esforços, nesses casos, para evitar polarizações, evitar cegueiras ou enfrentamentos autoritários. No entanto, nos momentos em que me vejo mais a vontade, com amigas e amigos próximos, não raros são os momentos em que me vejo imerso em debates cujo sentido se torna muito mais o debate pelo debate do que o aprendizado com as versões oferecidas pelos debatedores.

Um projeto particular para o próximo ano é, sem nenhuma dúvida, concretizar as disposições capazes de formatar os meus argumentos, com todas as pessoas, mas, sobretudo, com as quais mais convivo e gosto, sem despejar tons involuntariamente agressivos, sem passar a ideia de razão absoluta sobre os fatos ou coisas do gênero. São disposições que me parecem cada vez mais necessárias na esfera pública e que precisam se aplicar para as relações pessoais mais íntimas. Não importa qual for a divergência.

Daí se sobressai o segundo ponto sobre a relação entre teoria e prática que gostaria de abordar. Hoje, muitos amigos se queixam de que vivemos numa sociedade amarrada pelo “politicamente correto”, na qual “simples” piadas são interpretadas “ao pé da letra” e podem gerar discussões que, no limite, podem gerar graves rompimentos. O que é mais assustador nessas falas, eu creio, é que muitos dos que advogam uma liberdade irrestrita de enunciação são os primeiros a partirem para as vias de fato se uma piada sem graça sobre homossexuais ou traição conjugal for feita para a sua ilustre pessoa.

Esse é um tema complexo. Os limites entre a censura e a reificação de ações opressivas contra negros, gays, mulheres, obesos, portadores de necessidades especiais, idosos, pobres, mendigos, doentes e/ou outros grupos sociais historicamente prejudicados no acesso a direitos, prejudicados nas relações de poder, costumam ser nebulosos, em geral de propósito. Mesmo assim, tenho procurado obstinadamente rejeitar piadas, argumentos ou quaisquer derivações semelhantes que ataquem aqueles que já são atacados há muito tempo. Tenho me esforçado para não reproduzir dominações e opressões. Para separar o lixo e consumir somente o necessário, de preferência reduzindo o que é necessário. Tenho me esforçado para não fetichizar as mercadorias que consumo. Na prática.

A questão do consumo num sociedade capitalista, em que o conflito entre capital e trabalho é um pressuposto, não deixa de ser menos complexa. A história única à direita, vendo no capitalismo o modo de produção mais adequado à espécie humana, esquece a disparidade de poder e vantagens que é consequência do conflito entre capital e trabalho, conflito intrínseco ao capitalismo, nunca é demais lembrar. A história única à direita bate nos posicionamentos de esquerda apontando as posses da pessoa que se posiciona à esquerda, seu carro ou celular caro, utilizando como base argumentativa o que Karl Marx chamou de fetiche da mercadoria.

Há, sim, a fetichização de mercadorias e uma sobrevalorização dos seus valores de troca, em detrimento dos seus valores de uso. Vivemos numa sociedade capitalista, em que comprar é um ato fundamental para a sobrevivência. Mais do que fundamental, vende-se a ideia de que é prazeroso. Há, por outro lado, o fato de que o marxismo prega a extinção das classes sociais, entendidas como posição ocupada no mundo do trabalho, e portanto prega o fim da propriedade privada dos meios de produção, não da propriedade privada em si. Além do que, para o próprio marxismo, uma espécie de história única à esquerda, pelo menos na sua vertente ortodoxa, não há como viver no capitalismo sem consumir as mercadorias produzidas no capitalismo. Estimular a economia compartilhada ou solidária é uma alternativa transformadora e que ilumina um percurso proeminente.

Dois adjetivos são imediatamente imputados àqueles que se postam contra a reprodução de argumentos opressores ou que propagam uma sociedade mais justa, sustentável e menos consumista: “caga-regra” e hipócrita. Engraçados adjetivos, para dizer o mínimo. Preocupantes, no fim das contas. O “caga-regra” seria o indivíduo que questiona a “tradição” das arriadas e das ideias que subjugam grupos sociais já subjugados em direitos básicos. Ao questionar privilégios, o indivíduo crítico propõe que se estabeleça o que poderíamos chamar de alteridade, ou seja, uma procura por se colocar no lugar do outro. No verso de alguém que “caga” regras, este sujeito busca novas regras, aliás, busca a aplicação de regras que já existem – direitos constitucionais, Maria da Penha, legislações para coibir o racismo, etc.

A hipocrisia de quem tenta reconstruir as suas relações sociais com base na alteridade, no elogio da diversidade, estaria atrelada ao fato de que estas pessoas sempre seriam de pele branca, das classes médias e, em suma, pessoas privilegiadas (esquerda caviar). Esse é um estereótipo e é, como tal, incompleto. Diz uma parte da história. Os movimentos populares estão aí para contar a história múltipla e lutar diuturnamente pelos direitos que lhes são negados. Aí, desse argumento incompleto de que toda a esquerda é branca e de classe média, vem para a superfície um aspecto importante trazido pela ascensão das teorias pós-colonialistas no âmbito acadêmico, pelo menos desde as últimas décadas. Entre muitos outros elementos, destes estudos e teorias brotam provocações que se relacionam com um embate específico, o chamado "lugar de enunciação" de cada pessoa.

Em outras palavras, o lugar de fala de cada um de nós estaria marcado profundamente pelas nossas experiências subjetivas, o que produziria diferentes “regimes de verdade” acerca da vida coletiva, dos privilégios e dos desfavorecimentos sociais. Levando essa intrigante consideração ao extremo, o lugar de fala do homem branco, heterossexual e de classe média e/ou alta, por estar totalmente de fora do conjunto das opressões hegemônico nas sociedades modernas, por ser este indivíduo o protótipo do dominante, impossibilitaria a produção de narrativas, argumentos ou, vá lá, verdades sobre a opressão sofrida pelos outros. Um texto clássico e polêmico que ilustra essa posição é a obra da crítica literária Gayatri Spivak, intitulada, não à toa, “Pode o subalterno falar?”.

Não tenho a intenção de ir a fundo nesse debate – ao menos nessa autoanálise de 2015. Porém, por tocar num ponto que estou abordando por aqui, sinto-me na obrigação de um breve comentário. Do ponto de vista racional, consigo compreender sem muitas delongas o fato de que o lugar de enunciação de cada um de nós é variado e é composto por diferentes conjuntos de experiências. Consigo compreender, também, o fato de que cada conjunto de experiências nos constitui a ponto de haver, sim, diferença entre o que um negro enuncia sobre o racismo, uma mulher sobre o machismo e assim por diante. Acho que vivenciar a experiência de opressão faz diferença no que se pode dizer sobre ela.

Só que, em paralelo, acho que sacramentar um diálogo com o argumento do lugar de enunciação tende a interditar o diálogo, ao invés de fomentá-lo. Se levarmos ao extremo o argumento do lugar de enunciação, mesmo no espírito da alteridade e da diversidade, podemos chegar à conclusão de que o trabalho de construção de uma sociedade melhor cabe somente aos que sofrem as agruras da vida como ela é, pois só eles sentem a opressão. É verdade que o protagonismo das reivindicações deve ser dos grupos sociais desfavorecidos. Não deixa de ser verdade que todos os demais têm um papel a cumprir.

Há uma cena no filme Selma, no qual os negros do sul dos Estados Unidos estão lutando para poder votar, sem sucesso e sofrendo muita retaliação violenta, em que os líderes do movimento negro conclamam toda a população do país a viajar para Selma e somar forças na marcha antirracista. Centenas de pessoas, vestidas do sentimento de alteridade, negras, brancas, pardas ou como quisermos classificá-las, direcionam-se à Selma e compõem as fileiras da marcha. Pode-se dizer que a marcha teve sucesso apenas quando os brancos estiveram juntos. Pode-se dizer, no reverso, que a luta dos negros para romper com a sua desumanização instigou a alteridade e fomentou uma construção coletiva para além da própria marcha.

Na prática, eu tenho falhado muito em todas as tentativas que elenquei neste texto. Tenho me esforçado para fazer melhor, mas ainda me sinto condicionado pelas relações de poder, de distribuição desigual de recursos, bens e oportunidades, e não me sinto completo no ativismo por uma sociedade cujas relações de poder e acesso a oportunidades, bens e recursos sejam distribuídas de maneira justa e equânime. Longe disso. Sinto-me, muitas vezes, sem esperanças comigo mesmo, dadas as minhas fraquezas e equívocos. Sigo, entretanto, tentando algo novo. Andando a pé, de ônibus e de bicicleta.

Por ser homem, branco, heterossexual e de classe média, não me sinto hipócrita ou “caga-regra” ao pretender incentivar uma sociedade em que meus amigos e meus desconhecidos que compõem grupos sociais cujos direitos à dignidade da vida humana tenham sido sistemática e historicamente negados, e ainda estejam sendo negados, vivam em pé de igualdade de oportunidades com todos os demais indivíduos humanos. Hipocrisia, para mim, é sonegar impostos e reclamar do sistema de saúde. Cagar regras, para mim, é seguir cuspindo preconceitos contra pessoas que, por vezes, estão do seu lado. Alteridade não é hipocrisia ou imposição de regras. É uma categoria ética. Feliz 2016.

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