Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor
Sociólogo e Professor
A violência explícita das ideias e dos discursos autoritários, no fundo, esconde um argumento tão preocupante quanto a
sua carcaça. Por trás da gritaria e da simplificação, parece haver uma
perspectiva de que “eu e o meu grupo” merecemos uma vida digna e “vocês, os
vagabundos”, não se esforçam e não servem para nada.
Não à toa, os “outros” são sempre categorias que remetem às
populações em desvantagem na competição pela sobrevivência: os negros, as
mulheres, os estrangeiros, os homossexuais e assim por diante. Justificar e
legitimar através da atividade simbólica (ideias, argumentos, etc.) o acesso
desigual a bens e recursos escassos mostra-se importante para manter as coisas como elas estão na atualidade.
O que pode ajudar a explicar a adesão crescente a essa pauta
que fratura a humanidade entre pessoas merecedoras de dignidade e aquelas para as quais só resta o ódio e o desprezo? Penso que os trabalhos de Jessé Souza,
polêmico sociólogo brasileiro, oferecem articulações interessantes para esse
desafio¹. Não me
refiro às críticas do autor às tradições da intelectualidade brasileira, que
considero secundárias na sua obra. Acredito que o mais promissor se encontra na
tentativa de entender como uma espécie de “ideologia espontânea” das modernas
sociedades capitalistas consegue se “fixar” nas instituições e nos indivíduos
em pleno século XXI; como esse ideário logra êxito em legitimar sociedades cada
vez mais desiguais e excludentes?
Em primeiro lugar, é preciso reconstruir uma “hermenêutica
da moralidade moderna”, isto é, estabelecer um processo interpretativo e
histórico sobre como chegamos, hoje, a acreditar que determinadas ações são
corretas e outras não. Estamos constantemente avaliando uns aos outros e a nós
mesmos a partir de uma hierarquia valorativa não percebida. Agimos assim porque
seguir ou não uma regra social e moral é, sobretudo, uma prática incorporada. Charles
Taylor, filósofo canadense, diz que a identidade do sujeito moderno é
constituída pelo “self”, o “eu”, dividido na busca pela dignidade, pela autenticidade
e pela mobilização religiosa. O que me interessa aqui é o “princípio da
dignidade” que nos conforma. Digno é aquele indivíduo fruto da Reforma
Protestante, que relega os seus desejos e abraça uma economia moral calculista,
voltada ao pensamento prospectivo, ao autocontrole e ao trabalho produtivo,
elementos que justificam a autoestima individual e o reconhecimento social.
Se Taylor está certo em caracterizar o “conteúdo moral” que
compõe as hierarquias dos julgamentos que tecemos uns sobre os outros todos os
dias, falta entender como essas hierarquias se traduzem nas instituições e nas
práticas individuais. No pensamento de Michel Foucault, filósofo francês, a
categoria “poder disciplinar” surge dos estudos sobre as novas formas de
punição nas sociedades modernas. A punição em praça pública dá lugar, no âmbito
institucional, à punição discreta e atomizada. O poder disciplinar não está
apenas nos mecanismos de punição, mas transforma os modos de produzir a
legitimidade do ordenamento social. O indivíduo moderno se encontra constituído
por essas novas “técnicas do poder”. O poder disciplinar faculta a
classificação dos indivíduos e o cálculo da força de trabalho, arrolando os
corpos numa “rede de relações hierárquicas”. As formatações institucionais da
modernidade atualizam o princípio da dignidade descrito por Taylor. Só será
recompensado pelo reconhecimento das outras pessoas aquele sujeito que
incorporar o autocontrole, a disciplina e o pensamento prospectivo.
Resta investigar como esse poder disciplinar se incorpora
nos indivíduos e condiciona o sentido objetivo da ação das instituições sobre a
individualidade das pessoas. O conceito de habitus,
de Pierre Bourdieu, sociólogo francês, permite analisar as formas como a
hierarquia valorativa inarticulada, pormenorizada por Taylor e prescrita por
Foucault como elemento central do poder disciplinar nas instituições modernas,
capacita-se a “tornar-se corpo” nas pessoas, o que a leva a um automatismo
pré-reflexivo. A noção de habitus é
capaz de revelar como um sistema de estruturas cognitivas que nos motiva nas
ações práticas, um sistema de disposições duráveis inscritas desde as primeiras
socializações, organiza e condiciona previamente nossas possibilidades,
liberdades, limites e oportunidades. A vida social consciente precisa de uma
vida social inconsciente, precisa de um agregado não-dito de competências
linguísticas e culturais que autoriza a vida social consciente e, em paralelo,
a dinâmica pré-reflexiva do cotidiano.
Dessa forma, com a hierarquia valorativa descrita por
Taylor, o poder disciplinar de Foucault e o habitus de Bourdieu, Jessé Souza
articula um debate promissor para pensarmos as lutas simbólicas de classificação
e desclassificação no nosso tempo².
Entender o que faz com que uma multidão de pessoas tenha coragem de berrar e
agredir outras pessoas, considerando-se mais merecedora de dignidade e "boa vida"
que "os outros, os vagabundos”, pode passar por uma agenda de pesquisa nessa
trilha. Talvez isso possa nos ajudar a construir um futuro em que a dignidade
não seja um privilégio usufruído por uma parcela cada vez menor de habitantes
do planeta.
Notas
¹
Destaco, sobretudo, duas obras: “A construção social da subcidadania” (BH,
Editora da UFMG, 2012) e “A tolice da inteligência brasileira” (SP, Leya, 2015),
essa última com o foco na “Parte III”.
² Por
óbvio, este debate exige muito mais fôlego do que este pequeno texto apresenta.
Além disso, o aprofundamento de pesquisas sociológicas com amplo tratamento teórico
de dados empíricos pode fazer crescer bastante a compreensão dos referidos
fenômenos.
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