ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

terça-feira, 6 de junho de 2017

A escola e a justificação da desigualdade


Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

No país dos absurdos, talvez poucas coisas sejam tão representativas dos nossos mecanismos de justificação da reprodução de privilégios quanto a “festa” no recreio de uma escola privada, na qual os alunos se fantasiaram de “pessoas que deram errado na vida”.

O “evento” ajuda a esconder a desigualdade brasileira de duas maneiras. Primeiro, passando a ideia indireta de que “dar certo na vida” é uma questão individual, que depende apenas de esforços próprios. É preciso se dedicar para não “dar errado”, como a "ralé" que faz o serviço sujo e pesado. Ocorre que, ao contrário, “vencer” na escolarização e na vida profissional está associado, em geral, a aspectos arbitrários como a classe social ou a cor da pele. A qualidade da escola e as boas práticas pedagógicas podem auxiliar a “driblar” a reprodução dos “destinos originais”, mas estão longe de fazer acreditar que “dar errado” é um destino igualmente provável para todas as pessoas.

Segundo, porque ao desconsiderar que a posição ocupada pelos estudantes no espaço social conforma suas trajetórias, acaba fortalecendo uma espécie de “dominação simbólica” sobre determinados setores do mundo do trabalho, tão essenciais (ou mais até) do que quaisquer outros. Se queremos cidades limpas, atendimentos de qualidade em restaurantes ou entregas rápidas em casa, alguém precisa realizar esses serviços. Ao desvalorizar a labuta de milhões de cidadãos, cujo trabalho é muito explorado e mal remunerado, pessoas que se ferram para sobreviver e fazem a cidade funcionar minimamente, a “festa” dos jovens demarca com clareza as fronteiras classificatórias entre o que é digno ou não, entre o que é valioso e o que é "o lugar da ralé". Uma educação verdadeiramente de qualidade buscaria romper esses paradigmas e incentivar a valorização (econômica e simbólica) de todas as funções necessárias à vida social.

Num simples “evento escolar”, consolida-se o ocultamento das relações objetivas das desigualdades que nos assolam. Vemos, ainda, o processo de incorporação de “valores” classificatórios excludentes, que legitimam privilégios e acirram os nossos principais conflitos. Isso tudo numa rede escolar altamente conceituada e que pretende formar a nossa "elite intelectual".

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