Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor
No país dos absurdos, talvez poucas coisas sejam tão representativas
dos nossos mecanismos de justificação da reprodução de privilégios
quanto a “festa” no recreio de uma escola privada, na qual os alunos se
fantasiaram de “pessoas que deram errado na vida”.
O “evento”
ajuda a esconder a desigualdade brasileira de duas maneiras. Primeiro,
passando a ideia indireta de que “dar certo na vida” é uma questão
individual, que depende apenas de esforços próprios. É preciso se dedicar
para não “dar errado”, como a "ralé" que faz o serviço sujo e pesado.
Ocorre que, ao contrário, “vencer” na escolarização e na vida
profissional está associado, em geral, a aspectos arbitrários como a
classe social ou a cor da pele. A qualidade da escola e as boas práticas
pedagógicas podem auxiliar a “driblar” a reprodução dos “destinos
originais”, mas estão longe de fazer acreditar que “dar errado” é um
destino igualmente provável para todas as pessoas.
Segundo, porque ao desconsiderar que a posição ocupada pelos estudantes
no espaço social conforma suas trajetórias, acaba fortalecendo uma
espécie de “dominação simbólica” sobre determinados setores do mundo do
trabalho, tão essenciais (ou mais até) do que quaisquer outros. Se
queremos cidades limpas, atendimentos de qualidade em restaurantes ou
entregas rápidas em casa, alguém precisa realizar esses serviços. Ao
desvalorizar a labuta de milhões de cidadãos, cujo trabalho é muito
explorado e mal remunerado, pessoas que se ferram para sobreviver e
fazem a cidade funcionar minimamente, a “festa” dos jovens demarca com
clareza as fronteiras classificatórias entre o que é digno ou não, entre
o que é valioso e o que é "o lugar da ralé". Uma educação
verdadeiramente de qualidade buscaria romper esses paradigmas e
incentivar a valorização (econômica e simbólica) de todas as funções
necessárias à vida social.
Num simples “evento escolar”,
consolida-se o ocultamento das relações objetivas das desigualdades que
nos assolam. Vemos, ainda, o processo de incorporação de “valores”
classificatórios excludentes, que legitimam privilégios e acirram os
nossos principais conflitos. Isso tudo numa rede escolar altamente
conceituada e que pretende formar a nossa "elite intelectual".
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