Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor
Desconfio de qualquer jornalista. Quando foi que uma profissão tão relevante tornou-se o berço de impropérios e lugares comuns? O que leva um sujeito que é treinado para ouvir distintas versões sobre os acontecimentos a proferir sentenças absurdas como o dono da verdade?
Alguns colunistas/jornalistas, dia após dia, carimbam a população com a sua pretensa sabedoria. Quem os lê, por sua vez, pode acreditar que eles devoraram os clássicos da filosofia, das ciências sociais e da literatura. Apesar de achar pouco provável, até não duvido que algum conhecimento possa se debater nestas mentes confusas.
Uma das últimas pérolas que li discorre sobre o radicalismo e o idealismo, através de dois exemplos específicos: o feminismo e a figura de José Dirceu. Não há, entretanto, sequer uma definição sobre qualquer um dos conceitos. Para as ideias soltas expostas no texto, tanto o movimento de emancipação da mulher, quanto o político petista se traduzem em manifestações individuais de egoísmo atrelado a um ego faminto por reconhecimento.
Interessante. Sem sentido, mas interessante, do ponto de vista retórico. Uma das técnicas retóricas mais conhecidas é dizer que o outro faz aquilo que estamos fazendo. Bingo! Quanta semelhança com o referido texto. Radical e egoísta e chamando os outros disso tudo. Quanta semelhança com os jornalistas que escrevem sobre tudo e todos, mas se legitimam apenas a partir da amplitude que o veículo de comunicação no qual trabalham alcança na sociedade.
Um dos maiores sociólogos do século XX, o francês Pierre Bourdieu, defendia que as ciências sociais precisam buscar sempre um afastamento das noções cotidianas acerca do real. Uma espécie de vigilância na produção do seu conhecimento, uma ruptura inspirada em Gaston Bachelard. Nessa linha, muitas das assertivas erigidas desde a compreensão espontânea sobre a vida social resvalam em pré-noções, que podem, sim, derivar na reprodução de um arbitrário cultural específico.
Pois bem. Dizer que não há machismo na contemporaneidade é contrapor relatos, experiências detestáveis e estatísticas lançadas por organismos de pesquisa sérios e com mais credibilidade do que o cérebro de jornalistas sabichões. A Organização das Nações Unidas (ONU) não faz rodeios quando retrata a situação da mulher no cenário atual. Cerca de 70% dos seres humanos femininos sofrem algum tipo de violência no decorrer das suas trajetórias na Terra. Uma em cada cinco pessoas femininas será vitimada por tentativa de estupro durante a sua trajetória neste planeta.
Os dados são, infelizmente, incontestáveis. Estão aí para qualquer um ver. Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), deste ano, não deixa dúvidas: “Destaca-se a necessidade de reforço às ações previstas na Lei Maria da Penha, bem como a adoção de outras medidas voltadas ao enfrentamento à violência contra a mulher, à efetiva proteção das vítimas e à redução das desigualdades de gênero no Brasil”.
Só que essa é só a ponta de um trágico iceberg. Basta olhar para a história humana com rigor, não somente escrever livrinhos feitos para ganhar dinheiro e inchar as ervilhas presentes nas cabeças alheias. O resultado da caminhada machista recai, nos dias de hoje, naquilo que Bourdieu conceituava como violência simbólica. Uma violência, uma dominação que não demanda obrigatoriamente a força física, mas se configura em elementos simbólicos e atitudes. Além disso, que se imiscui no próprio indivíduo que sofre a violência, fazendo com que ele não a entenda como tal.
Salvas as exceções que confirmam as regras, os movimentos pela emancipação da mulher, sob a égide do que se conhece por feminismo, não pretendem inverter a opressão. Não querem que os homens passem ao papel de oprimidos, e as mulheres de opressoras. Querem a justiça. Querem que as mulheres sejam do jeito que bem entenderem. Que se vistam do jeito que bem entenderem. Que ajam da maneira que bem entenderem. Sem receios de serem subjugadas, estupradas ou julgadas por uma moral hipócrita que não resiste à meia dúzia de argumentos.
Um minuto para respirar. Ter que articular essas palavras tão óbvias dá uma descrença na humanidade, capaz de fazer perder o ar. Sigamos.
Quando tratamos de José Dirceu, aí a coisa tende a ficar ainda mais óbvia. Os festejados escritores de textos bonitinhos – e sem conteúdo – esquecem (ou desconhecem) totalmente as intermitências da cena política e ideológica nacional. Isso que dá jornalistas quererem distribuir verdades compulsórias e irrefletidas.
Desde a década de 1990, as principais correntes “idealistas” começaram a cair fora do Partido dos Trabalhadores (PT). Grande parte dos grupos organizados sob a bandeira de um socialismo mais genuíno (sem trocadilho), sob os preceitos do “Programa de Transição” de León Trotksy ou da sua atualização, nas feições de Nahuel Moreno, não está mais no PT faz tempo. No momento em que a sigla assumiu o Governo Federal, aí toda essa lambança ideológica veio à tona de vez.
O documento intitulado “Carta aos Brasileiros” marca em definitivo o afastamento do PT de uma linha ideológica comprometida com os ideais da esquerda mais radical. Não é imperativo desfrutar de grandes saberes para descobrir isso. No entanto, deve-se buscar informação, reflexão e alguma lógica entre as palavras e a realidade. Muito mais fácil é sair digitando lugares comuns.
Hoje, José Dirceu não é um radical idealista. Nem aqui, nem em Cuba, nem na França, nem na China, nem nos Estados Unidos, nem na Alemanha. Dizer esse absurdo é patinar no barro das falácias dos dizeres espontâneos. Ação que traz pequenos problemas na mesa do bar. Contudo, que se faz lamentável para jornalistas e escritores de renome. Que ajuda a reproduzir desigualdades e opressões. Embora o PT diferencie-se um pouco dos demais partidos por um caráter mais propenso às classes populares, os banqueiros nunca lucraram tanto quanto nos seus mandatos. Os ricos enriqueceram ainda mais. Como pode um líder dos grupos dominantes dessa organização ser, neste contexto, um idealista radical? Alguém me explica, quero compreender.
Sugiro a leitura do texto da sensacional Eliane Brum, na sua estreia no El País, do qual cito este pequeno trecho: “A mudança é um momento agudo de um processo histórico no qual Lula e o PT tiveram, mais do que qualquer outro político e partido, uma contribuição decisiva, no concreto e no simbólico de sua ascensão ao poder. Apartaram-se, porém, e parecem estar bem menos preocupados do que deveriam com seu divórcio com as ruas. O braço erguido, o punho cerrado, é um capítulo melancólico de um partido que parou de escutar”.
Neste mundo de hoje, ser homem, branco e com condições razoáveis de sobrevivência econômica e não perceber todas as opressões e desigualdades que atravessam a nossa existência é algo análogo a uma ofensa grave à espécie humana. Por isso, dedico-me todos os dias a ajudar a criar as oportunidades que tive para outros seres humanos. Dedico-me todos os dias a desconstruir os alicerces simbólicos das injustiças no diálogo com os estudantes que tenho a honra de poder trabalhar.
Por fim, o feminismo e José Dirceu só são radicalismos idealistas no instante em que o ego se junta à ervilha. Ego e ervilha juntos formam um amálgama catalisador de preconceitos, irresistível para quem pensa que pode escrever sobre tudo, mas não se aprofunda em nada. Em alguns casos, assim caminha a humanidade.
.