Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor
Poderia ser qualquer um. No caso, era ele. Nascido por aqui mesmo, de pele escura. Um rapaz comum. Com atenção, percebia o debate diante de si. Os argumentos principais defendiam a necessidade da valorização do Dia da Consciência Negra e da figura de Zumbi dos Palmares, assassinado em 20 de novembro de 1695. Ele mexia na barba. Pensava. O desdém de alguns na plateia simbolizava uma quase ofensa.
A controvérsia* girava em torno da presença de escravizados no interior do Quilombo dos Palmares, localizado em Alagoas, liderado por Zumbi no século XVII. Território de resistência dos negros escravizados que conseguiam escapar. “Lá tinha escravos!”, gritara um desconhecido. O debatedor explicava que o significado da escravidão entre as sociedades africanas era distinto. Representava uma sujeição ao domínio de outro ser humano, em virtude de guerras ou aprisionamentos. Porém, não era um sistema que transformava seres humanos em mercadorias e gerava acumulação de riquezas através do tráfico de gentes. A exploração não era renovada sistematicamente e não mantinha pessoas cativas de modo institucionalizado, numa categoria especial de subordinação.
Confuso, recordava a história do Brasil. Há 318 anos o Império Português degolara, mutilara, castrara, salgara e deixara em praça pública, no Recife, a cabeça de Francisco, então Zumbi dos Palmares. Durante meses, para servir de exemplo. Refletiu abismado: “Esse deve ter atazanado os senhores!”. Sentiu-se confiante. Mostrava-se possível enfrentar o racismo, resistir, contrapor a injustiça. Zumbi morrera, mas ainda hoje o seu legado ecoa em todos os cantos desse país. Sentiu um sopro de esperança. Vibrou orgulhoso por sentir-se mais negro. Seus antepassados não se deixaram escravizar sem oposição. Seguiu seu caminho, com um sorriso no rosto.
Poderia ser qualquer um. Nascido por aqui mesmo. Um rapaz comum, como eu. Mas eu tenho a pele clara, branca. Seja qual for o nível de ancestralidade africana presente na minha genética, eu o valorizo. Cerro os punhos por ele. Dobro-me em reverência à imagem de Zumbi. Imagem de luta e resistência a uma das maiores tragédias da história da humanidade.
* Não sou historiador, tampouco tenho talento para isso. No entanto, duas citações parecem importantes, no cenário das controvérsias acerca da escravidão entre os africanos e no Quilombo dos Palmares:
“Todas as situações de exploração existentes na África tradicional (...) não se constituem em sistemas escravistas, porque a exploração não era renovada sistematicamente e não suscitava uma categoria de indivíduos mantida institucionalmente (de fato ou de direito) em uma relação de subordinação. A escravidão como modo de exploração só pode existir se se constituir uma classe distinta de indivíduos com um mesmo estatuto social. Essa classe distinta, dita escrava, deve-se renovar de forma contínua e institucional, de tal modo que as funções a ela destinadas possam ser garantidas de maneira permanente e que as relações de exploração e a classe exploradora (senhores) que delas se beneficiam possam também se reconstituir regular e continuamente” (MUNANGA, 2006, p. 24).
“A escravidão produtiva era inviável em Palmares. (...) Não existiam em Palmares condições econômicas para a produção escravista. Os palmarinos viviam uma economia essencialmente natural. O uso da terra era livre. A produtividade da agricultura palmarina era baixa. O produtor palmarino garantiria escassamente seu sustento e produziria um magro excedente” (MAESTRI, 2002, p. 66).
Para maior aprofundamento na temática, recomendo os seguintes materiais:
MAESTRI, Mario. Benjamin Péret: um olhar heterodoxo sobre Palmares. In: PÉRET, Benjamin. O Quilombo dos Palmares. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2002.
MUNANGA, Kabengele. Para Entender o Negro no Brasil de Hoje: História, Realidades, Problemas e Caminhos. São Paulo: Ação Educativa, 2006.
Assim, não se esgotarão os debates, mas já se terá alguma referência sólida baseada em pesquisa documental e análise acadêmica.
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